ANTT adia novamente fim da carta-frete

Método de pagamento a caminhoneiros autônomos movimenta mais de R$ 60 bilhões por ano e contribui para manter setor de transporte na informalidade
Foto: Divulgação/APPAAmpliar
Cerca de 60% dos mais de um milhão de caminhoneiros brasileiros ainda recebem por meio da carta-frete
Centenas de milhares de caminhoneiros brasileiros iniciaram esta semana frustrados. Mais uma vez a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) decidiu adiar o início da fiscalização para punir empresas que se utilizam de um sistema de pagamentos arcaico e prejudicial aos transportadores autônomos e que movimenta de maneira informal cerca de R$ 60 bilhões todos os anos: a carta-frete.
Em uso em todo Brasil há mais de cinco décadas, esse método de remuneração prevê que o caminhoneiro desconte o valor do frete em postos de gasolina previamente credenciados pelas empresas. Os postos, por sua vez, só fazem o desconto da tal carta mediante a compra casada, seja de combustível, seja de outros insumos, com preços geralmente superiores aos cobrados aos clientes normais. Em geral, os postos de combustíveis obrigam que o caminhoneiro gaste cerca de 30% do valor da carta-frete, mas em alguns casos, esse percentual pode chegar a 50%.
A carta-frete foi abolida por meio de uma lei promulgada em 2010 e que entrou em vigor em abril de 2011. De acordo com a ANTT, as empresas teriam até o dia 23 de janeiro de 2012 para adaptarem-se às novas regras, que preveem o pagamento do frete apenas por depósito em conta corrente ou por meio de cartões de débito.
Na terça-feira, 24 de janeiro, sem dar maiores explicações às associações do setor, a ANTT decidiu prorrogar novamente o prazo para início do que chama de fiscalização punitiva. “Adiamos por prazo indeterminado, continuaremos a fazer a fiscalização de orientação, mas ajustes ainda precisam ser feitos para que possamos iniciar as punições”, afirmou Noboru Ofugi, superintendente de Serviços de Transporte de Carga. Mesmo assim, segundo ele, a carta-frete já está proibida e seu uso está em declínio desde abril, quando a lei passou a vigorar.
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Carlos André, o Pastor, convive com as cartas-frete há 16 anos e diz que elas ainda são comuns no interior do país
No Terminal de cargas da Fernão Dias, na zona Norte de São Paulo, um complexo de lojas, transportadoras, oficinas e agentes de cargas por onde passam diariamente mais de mil caminhoneiros, a carta-frete continua mais viva do que nunca. É praticamente impossível encontrar um só caminhoneiro por ali que não conviva constantemente com esse método de pagamento. Para a maior parte deles, a tendência é de que a carta-frete ainda perdure por muitos anos. “A verdade é que no interior do país ainda tem muito, principalmente no Nordeste e mesmo no interior de São Paulo”, conta Carlos André Cardoso, que aos 34 anos de idade já contabiliza 16 deles na boleia de um caminhão. “E se faltar carga, a gente pega com carta-frete mesmo, não tem jeito”.
Carlos André não é o que se pode chamar de um caminhoneiro típico. Bem articulado, faz questão de vestir-se como se trabalhasse em um escritório ao assumir o volante. Por isso, ganhou o apelido de Pastor pelos colegas de estrada. Mas sua permanente – e incômoda - relação com a carta-frete é a mesma dos milhares de caminhoneiros brasileiros. “Eu estou sem carga há alguns dias e se aparecer alguma com preço bom e com carta-frete, eu pego, não tem jeito”, Marcos Roberto Cunha, que também na terça-feira esperava a oportunidade de carregar seu caminhão para algum destino no Nordeste.
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Marcos Cunha admite que se houver escassez de carga esquece da lei e aceita receber por meio de carta-frete
“É uma luta difícil, há resistência por parte das empresas, que mantém seus pagamentos na informalidade e não declaram esse valor ao governo, mas estou otimista que a partir de hoje é o início do fim da carta-frete”, dizia José Araújo, o China, presidente da União Nacional dos Caminhoneiros, na manhã de terça-feira. Até aquele momento, nem mesmo China, um dos principais articuladores junto ao governo federal para a aprovação da lei, sabia que a ANTT havia novamente prorrogado o início da fiscalização. Assim como China, que garante ter canal aberto com a ANTT, a maior parte dos caminhoneiros mal sabe em que pé andam as decisões dos burocratas de Brasília. Sabe-se que há uma lei, que a carta-frete está proibida, mas não se sabe ao certo como tudo vai funcionar.
Em meio a tanta desinformação, as empresas que poderão lucrar com as mudanças agem de forma rápida. Uma das únicas formas de pagamento que será aceita é o depósito em cartão de débito. Para isso, uma empresa precisa se credenciar junto à ANTT para fazer a intermediação entre a transportadora e os autônomos – seis delas já foram aprovadas pela agência. É um mercado potencial enorme. Não à toa, a Visa está doando à Unicam, de China, um milhão de apostilas para explicar aos caminhoneiros como tudo vai funcionar.
Até agora, no entanto, pouca coisa mudou de fato e as perspectivas são de que as mudanças ocorram de forma lenta. Até mesmo o diretor executivo do Sindicato das Empresas Transportadoras de Carga de São Paulo, Adauto Bentivegna, reconhece que o fim da carta-frete vai demorar. “Infelizmente, estamos falando de um prazo entre três e cinco anos para que se elimine de vez a carta-frete”, diz ele. Bentivegna afirma que o sindicato é favorável ao fim desse método de pagamento, mas discorda de toda a burocratização que a ANTT está criando para conseguir fiscalizar o setor.
“Para nós é interessante o fim da carta-frete porque ela leva todo mundo pra formalidade e reduz a competição desleal, mas é ingênuo acreditar que uma prática de 50 anos vai se acabar só porque uma lei cheia de burocracia entrou em vigor”, diz ele.
Foram exatamente problemas de “ajuste” no cabedal burocrático criado pela ANTT que adiaram, mais uma vez, o início da tal fiscalização punitiva. De acordo com o Ofugi, o superintendente de Transportes de Cargas da agência, o problema dessa vez ocorreu porque os bancos de dados da ANTT precisam de ajustes e os sistemas da agência não estariam conversando com as transportadoras. A partir de agora, para cada contrato de transporte, uma transportadora terá que entrar no site da ANTT, registrar o movimento da carga no código do caminhoneiro, que terá que ser registrado na agência, para então emitir um número que será o registro da transação. Só com ele a transportadora poderá fazer o pagamento ao caminhoneiro autônomo.
Hoje não existe nada disso. Os contratos em geral são fechados de boca. E não raro um representante de uma transportadora aproxima-se de um grupo de caminhoneiros, enche o pulmão e avisa: “Carga para Canoas, Rio Grande do Sul, alguém vai?”. Indubitavelmente o sistema planejado nos gabinetes da ANTT e a realidade do Terminal de Cargas paulistano parecem estar muito mais distantes que que os cerca de 1 mil quilômetros que os separam.

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