Conflito em terra, tempestade na logística

É irrefutável a relevância da Rússia como potência económica, posicionando-se como uma das principais peças no xadrez global. Sendo o segundo maior fornecedor de gás natural no mundo e simultaneamente fonte de 11% de todo o petróleo produzido atualmente, é extensa a lista de setores nos quais alimenta o globo.



Aquele que é o maior país do planeta em termos da sua extensão, cobrindo mais de um nono de todo o território terrestre, desempenha uma abrangente influência a nível internacional. Portugal, num extremo do continente europeu, apenas "toca" na vizinha Espanha. Por comparação, a Rússia constitui fronteira com catorze países distintos. Em paralelo, esta região representa um corredor aéreo essencial para a ligação entre a Europa Central e do Norte com o leste da Ásia. O desvio desta rota representa um duplo impacto, pela via da inevitável sobrecarga das demais ligações, bem como pela maior distância e, consequentemente, custo financeiro. É simples concluir que, através de toda esta superfície, seja por via marítima, terrestre ou aérea, existem substanciais quantidades de mercadorias em movimento, num fluxo continuado de entradas e saídas.

Quando se afirma que o mundo se transfigurou de forma abrupta na madrugada de 24 de fevereiro, o dia em que se assinalou o início da guerra entre Rússia e Ucrânia, o consenso é quase total. Tal afirmação não podia ser mais adequada, especialmente quando se trata de expor os novos desafios que se avizinham para o setor logístico. Ambos os países são dos mais dominantes fornecedores europeus e mundiais de metais, minérios e de outras commodities.

Essa mesma mudança não é uma promessa ilusória, visto que já se encetou. Desde então, da União Europeia e E.U.A até ao Japão e à Austrália, foram inúmeros os países a aplicar severas sanções económicas ao invasor, num nível sem precedentes. Apesar do epicentro do conflito se concentrar em território ucraniano, o impacto tornou-se global e vai ser sentido fortemente numa cadeia de fornecimento já anteriormente exposta a vulnerabilidades. Existem mais de 100 mil empresas na Europa com dependência direta ou indireta de fornecedores na Rússia. É impossível para qualquer projeto internacional conseguir fintar as sanções económicas e os controlos alfandegários impostos nos últimos dias.

Ao suster-se das trocas económicas entre países e da globalização assente na estabilidade diplomática, o setor logístico só pode assistir a este cenário de forma extremamente dramática. Há consequências diretas na aplicação das sanções, mas, de igual forma, transtornos indiretos, como atrasos nas entregas ou congestionamentos nos hubs de transbordo de mercadorias. Com a limitação das rotas, novos players vão emergir, entrando em cena o papel estratégico que países como a Turquia podem passar a desempenhar. Se a estas restrições somarmos o aumento da distância das rotas e a subida do preço dos combustíveis, facilmente concluímos que estamos perante a tempestade perfeita para as empresas da cadeia logística.

As autoridades aduaneiras dos membros da União Europeia estão, por exemplo, a proibir a deslocação de navios de transporte de mercadorias destinados à Rússia, o que congela as transições para este mercado por via marítima. Há navios porta-contentores retidos em fiscalizações ou impossibilitados de se mobilizarem. O movimento aéreo também foi agravado, sendo que a UE impossibilita aviões russos de sobrevoar o seu território. A Rússia respondeu com medidas equivalentes. Com tamanhas restrições, ausência parcial ou total de cobertura de seguros e subida exponencial da cotação do petróleo, é mais do que provável o acréscimo exponencial dos encargos do transporte.

Contudo, estas medidas não disfarçam a postura inerte da UE que, mesmo condenando as ações russas, não primou pela defesa do seu sistema económico. Não foi apenas em fevereiro deste ano que foram dados sinais claros de que era urgente trabalhar no sentido de uma maior autonomia energética face à Rússia. Foram múltiplos os avisos e as ameaças de Vladimir Putin nos tempos mais recentes, mas as restantes potências mundiais mantiveram uma completa inação. A economia russa depende das trocas comerciais com o Ocidente, este depende do fornecimento de gás e petróleo russo. Foi somente ao pisar o terreno pantanoso do risco de confronto que o paradigma da relação com a Rússia se alterou.

Os motivos por detrás desta invasão são extremamente controversos, mas existe consenso, entre os analistas, face à relevância dos objetivos políticos, económicos e comerciais. A Crimeia, anexada em 2014, tem o mesmo significado que a região do Donbass, local onde as tropas iniciaram a invasão - ambas oferecem uma posição estratégica de saída para o mar Negro e consequente acesso ao Mediterrâneo. Era através dos portos do mar Negro que a Ucrânia, ainda antes da presente guerra, já desempenhava um papel fundamental no transporte de exportações de petróleo da Rússia para os mercados europeus. Odesa, Dnipro, Kharkiv, Mariupol ou Kyiv partilham uma coincidência - são exemplos de cidades vitais para a exportação de produtos, além de exemplos de cidades bombardeadas e na iminência do controlo do regime russo.

Por mais que a ameaça seja evidente, ainda não assistimos a uma verdadeira guerra económica entre a Rússia e a Europa, pois existe uma ligação logística que se mantém. Refiro-me ao célebre gasoduto Nord Stream I. O norte da Europa precisa tanto do aquecimento do gás e petróleo russo como as empresas russas necessitam do capital dos consumidores europeus, que representa um pouco de oxigénio para uma economia a afundar-se.

Tendo a atual instabilidade geopolítica e social sido precedida por uma grave crise sanitária que ainda continua a impactar o mundo, o clima desafiante de incerteza tornou-se no dia a dia de todas as empresas que pertencem ao setor logístico e transitário. Quando se esperava a retoma de alguma normalidade, fruto do alívio das restrições pandémicas, a escassez de semicondutores sem fim à vista, o aumento dos custos das matérias-primas e um conflito armado na Europa asseguram que tal não acontecerá nos próximos tempos. Em meros dias, um contentor de 20 pés da Índia para São Petersburgo passou de cinco mil para 16 mil dólares. Os centros logísticos de carga encontram-se pressionados há largos meses e esta guerra só vai contribuir para exponenciar severamente tal volatilidade.

Os efeitos são, agora, sentidos na carteira dos portugueses. Com o incremento do preço dos combustíveis, que alcançou máximos históricos, há graves consequências para as famílias. Este aumento, que conduz à inflação noutras áreas como não assistíamos desde outubro de 2011, vai inevitavelmente conduzir à diminuição do poder de compra. Todos estes fatores recaem inexoravelmente nas empresas de transporte nacional e, consequentemente, nos consumidores finais.
É neste ponto que entra a possibilidade de Portugal se posicionar como um importante fornecedor da Europa em diversos setores. Porventura aliado a Espanha, o nosso país está perante uma oportunidade única para reivindicar o seu papel estratégico, consequente da sua localização geográfica privilegiada, numa altura em que é clara a opção integrada europeia de diminuir a dependência face à Rússia.

Nos próximos meses, o encerramento de fábricas, a restrição de rotas de trânsito ou a aplicação de novas sanções deverão tornar-se na nova norma. Torna-se clara a premência da adoção de medidas que permitam reduzir o choque, em particular para as empresas deste setor. Com a escalada do conflito, o impacto na economia global vai continuar a aumentar, mas ainda é cedo para conseguir medir a verdadeira dimensão desta crise. Por mais vaticínios a que possamos proceder, a imprevisibilidade da postura a que a Rússia nos habituou impede-nos de conjeturar o futuro, mesmo no curto-prazo. É preciso estarmos preparados para qualquer cenário.

Mário de Sousa

Administrador da Portocargo

Fonte : https://www.dn.pt/opiniao/

Postar um comentário

0 Comentários